O meu 25 de abril
“O
meu 25 de abril de 1974 foi…”
Há cinquenta anos, eu tinha 10 anos, e vivia em Alenquer.
Tal como acontecia com a maioria das crianças de então, tinha escola de manhã e
à tarde.
Como era
hábito, a minha mãe acordava-me e, enquanto eu me arranjava, preparava-me o
pequeno – almoço.
Normalmente, a minha amiga e colega da 4ª classe, Aura,
vinha ter a minha casa e seguíamos as duas a pé para a escola.
Aquele dia não foi
exceção. Pelas 8h e 40m a Aura tocou à campainha.
A partir desse
momento os acontecimentos desenrolaram-se em catadupa, qual montanha russa…
A minha mãe abriu a porta e deparou-se com uma Aura
perfeitamente alvoraçada que repetia incessantemente:
- D. Benilde há guerra em Lisboa!
-O que dizes, Aurita? Ainda vens a dormir ou quê?
(convenhamos que a Aura era uma menina com uma imaginação prodigiosa…)
- É verdade D. Benilde, ligue o rádio! A minha mãe diz que é
lá em Lisboa, é muito longe, e que temos de ir na mesma para a escola! Ligue o
rádio!
Perante tal alarido, fez-se-lhe a vontade e o dito “cantou”
não os habituais fados, mas uma “lengalenga”, para mim sem sentido, em que alguém pedia para as
pessoas permanecerem em suas casas.
Ficámos meio atónitas, até que a minha mãe “desceu à Terra”,
e ditou a “sentença”:
- A tua mãe tem razão, aquilo é lá em Lisboa e vocês têm
escola aqui, portanto é para lá que vão!
E fomos, mas, contrariamente ao habitual, a nossa professora, a D. Isaltina dos Anjos Cardoso,
ainda não havia chegado. O facto, era extremamente inusitado, pois, para
ela, a pontualidade era sagrada.
Enquanto o alvoroço reinava na escola, em casa, a minha mãe
ficou atormentada. Estava a colocar os pensamentos em ordem, recordando que o
meu pai lhe dissera que naquele
dia iria a serviço da empresa para a Baixa de Lisboa. Emersa nos seus
pensamentos, ouve a campainha da porta.
Foi abrir e depara-se com a vizinha do andar ao lado, a D.
Rosa, lavada em lágrimas. O marido desta, era, à data, encarregado de uma
empresa do concelho de Alenquer. Tal como o meu pai, também ele tinha ido para
a capital tratar de assuntos inerentes ao seu trabalho. A D. Rosa estava com os nervos em franja,
pois já via o marido morto por balas de espingarda ou disparos de tanque das
tropas.
Foi então que a
minha mãe já farta de lamúrias e choros, resolveu tentar pôr cobro à situação
dizendo:
- D. Rosa, se o seu marido está em Lisboa, o meu também e
não nos rende de nada ficarmos aqui a imaginar cenários! Vamos aguardar e
esperar que lá mais para a tarde os nossos maridos cheguem a casa!
Na escola primária,
as meninas da primeira à quarta classes estavam felizes da vida, já que nenhuma
das professoras se
encontravam presentes.
O atraso
extremamente fora do comum durou cerca de 45 minutos. Quando já nos
perguntávamos se não deveríamos regressar a nossas casas, eis que surgem todas
as professoras em conjunto.
Hoje percebo que
deviam estar reunidas, tentando decidir o que fazer; lecionar normalmente ou mandarem-nos embora.
E, foi justamente o que sucedeu, enviaram-nos para casa, decisão que me deixou
perplexa.
Explicaram-nos que
algo se passava em Lisboa e, salvaguardando a nossa segurança e das nossas
famílias, haviam decidido que naquele dia não haveria aulas.
Fiquei sem fala.
Olhei para a minha amiga Aura, os olhares cruzaram-se e, na minha inocência,
pensei que vinha aí uma guerra. A Aura afinal tinha razão?
Com a minha tenra
idade, percebi que algo de muito extraordinário estava a acontecer que se
sobrepunha às pessoas que, segundo a minha visão do mundo à época, tinham
grande autoridade.
Dali em diante, nada
seria como dantes e em breve eu estaria a desejar voltar a ouvir fados na
rádio, (estilo musical que não apreciava) e já não conseguia suportar o tão
badalado tema da “Gaivota”.
Inicialmente, para nós, crianças, o 25 de abril começou por
ser uma folga da escola.
Chegada a casa, só
queria saber do meu pai, que trabalhava em
Lisboa, aonde era Chefe de Recursos Humanos, (na época chamava-se Chefe de
Pessoal).
Embora a minha mãe
tentasse disfarçar, a tensão era enorme. Ao tempo, poucas eram as pessoas que
possuíam telefone, mas a vizinha D. Rosa tinha-o. Assim, telefonou-se para a
empresa onde trabalhava o meu pai, tendo-nos sido transmitido que a administração mandara todos os funcionários
para casa.
E, do meu pai, nada...
Foi por volta das
quatro da tarde que, para nosso grande alívio, o meu pai chegou são e salvo,
contando tudo o que vira e ouvira. Tinha estado junto aos tanques nas ruas da
Baixa. Passou por uma odisseia para conseguir voltar
para casa. Os boatos eram mais que muitos e passavam de boca em boca.
Disseram-lhe que os comboios da Estação de Santa Apolónia tinham deixado de
circular. Chegou mesmo a pensar que teria de vir de táxi para casa. Mas, graças
a um comboio que passou em Entre campos, lá chegou a Vila Franca de Xira e daí
apanhou um dos habituais autocarros até Alenquer.
Ele estava
esfusiante com todos os acontecimentos. Já eu…achava que algo não batia certo!
Até à data, todos os adultos me haviam dito que os meninos e meninas deviam
estudar e não faltar às aulas. Então porque é que eu estava em casa, quando
devia estar na escola?
Poucos dias depois,
no 1º de maio, toda a gente saiu à rua, comemorando, pela primeira vez, o Dia
do Trabalhador em total liberdade. Assim aconteceu também em Alenquer.
Recordo-me que foi
depois de almoço que as pessoas se começaram a juntar. O largo central da terra
pejou-se de gentes.
Os meus pais
acorreram à “chamada” e, por arrasto, fui com eles, sem compreender muito bem o
significado de todo aquele ajuntamento em que as pessoas pareciam brotar do
chão, qual formigas saídas do formigueiro.
As palavras de ordem sucediam-se:
- “O povo unido, jamais será vencido!”, “O povo está com o
MFA!”
A minha cabeça deu um nó. Mas afinal porque é que o povo estava unido? Contra
quê, ou quem? E quem era esse tal de “MFA”?
A marcha foi seguindo o seu rumo,
percorrendo as ruas da vila, até que, às tantas, comecei a sentir-me
imensamente desconfortável e com medo daquela turba.
Não conhecia ninguém, não percebia a razão de tanto grito e alarido. Dei a mão
à minha mãe e apertei-a com quanta força tinha, temendo ser arrastada e
separada dela e do meu pai.
A páginas tantas,
consegui fazer-me ouvir e perguntei à minha mãe:
- Mas para onde é que esta gente vai?
Ela, ao ver a minha expressão de medo, tentou acalmar-me, mas
parecia que quanto mais o fazia, mais medo eu sentia. Levava encontrão de um
lado, berrava outro do outro, até que por fim soçobrei e desatei num choro
convulsivo. Todos os olhares caíram sobre aquela menina que balbuciava entre
soluços:
- Eu quero ir para casa!
Não houve nada que me demovesse e a minha mãe teve de bater
em retirada e trazer-me de volta ao lar doce lar!
Quanto ao meu pai,
quando chegou a casa, disse-me que eu já era crescida para fazer birras
daquelas!
Aos meus olhos, tudo
aquilo era muito confuso e não percebia o que toda aquela gente andava a fazer
gritando palavras de ordem para mim
sem sentido.
O mundo
a que estava habituada havia desmoronado. Todo um novo contexto e conjuntura
estavam em marcha e os meus dez anos não o conseguiam assimilar.
Naquele mesmo ano
fiz o exame da 4ª Classe e entrei para o então
designado 1º ano do Ciclo Preparatório. Pela primeira vez tive uma turma
mista, conheci inúmeros novos colegas, professores e professoras, e vivi todo o
clima da “legalidade revolucionária” que se seguiu, com toda a
agitação/ebulição social e política que lhe foram
peculiares.
Seguiram-se os tempos das
“mais amplas liberdades” e instalaram-se as greves selvagens, as ocupações
selvagens, a reforma agrária, as cooperativas que punham e dispunham das
propriedades que passaram a ser pertença de todos. Na rádio, ouviam-se quase
exclusivamente músicas de intervenção, contendo frases ao estilo “O povo é quem
mais ordena!”, “Unidade, unidade, unidade do trabalho contra o capital”.
O
meu pai foi dos primeiros a tornar-se membro do Partido Socialista em Alenquer
e se o Partido o “ganhou”, simplesmente eu “perdi-o”. As sessões de
esclarecimento e comícios pelo concelho sucediam-se a uma velocidade
vertiginosa. Fosse semana ou fim de semana, não conseguia colocar-lhe a vista
em cima. Já eu, ficava em casa com a minha mãe, a um ritmo aparentemente normal
dentro da “anormalidade” e sem compreender aquele vai vem constante.
Na
escola (1º ano do Ciclo Preparatório, equivalente ao atual 5º ano de
escolaridade), os acontecimentos quase roçavam o insuportável.
Tendo
sido até à 4ª classe uma aluna aplicada, nunca me passaria pela cabeça que
naquele ano e seguinte, ganharia medo de ir à escola. Alguns dias eram de
terror completo. Os mais pequenitos como eu, viam-se a braços com os desvarios
de alunos a quem ninguém punha na ordem. Tudo por conta de uma tal “liberdade”
que para mim mais não era do que uma “prisão”.
Todos
à minha volta falavam de liberdade, mas eu sentia-me coartada nas minhas
liberdades. Para uma menina de dez anos foram tempos muito difíceis.
Felizmente,
tinha dois ou três colegas, rapazes, que eram literalmente meus guarda costas.
Mesmo assim, estava sempre à espera de que ao virar da esquina me visse a
braços com os gandulos de então.
Faziam-se
reuniões gerais de alunos. Fui eleita delegada de turma, mas aquelas lides não
me entusiasmaram. A linguagem utilizada era vã, com chavões perfeitamente
inúteis, que só serviam para agitar ainda mais o clima, já de si tão explosivo
a todos os níveis.
Recordo
que o meu pai foi um dos encarregados de educação que implementaram e acionaram
a primeira associação de pais e também, aí, as reuniões se sucediam com larga
participação de todos os pais, professores e comunidade educativa de um modo
geral.
O
clima vivido entre professores e pais era no mínimo “uma tourada”. Uns julgavam
que se impunham, levando a cabo greves selvagens e os outros impuseram-se,
levando ao conhecimento do Ministério da Educação o que se passava nas suas
costas. Foi algo inédito, chegando a existir um acordo entre as partes
envolvidas. Podia dizer-se que, ao tempo, existiam duas fações de professores
dentro da escola, uns que pretendiam fazer a greve, como forma de agitar, e
outra que não entendia que fosse a melhor forma de atuação.
No
meio de toda aquela situação, olhavam-me como a filha do “Presidente da
Associação de Pais” e era como se tivesse uma estrela de David bordada na
lapela do casaco. Alguns professores só não me reprovaram, porque não tinham qualquer
motivo para tal.
Na
rádio, ouviam-se constantemente frases que apregoavam incessantemente “a paz, o
pão, a educação”. Para mim, estas pareciam-me completamente o contrário do que
eu estava a experienciar. Paz? Aonde? Eu estava em constante clima de guerra,
fosse dentro das salas de aula, fosse nos intervalos nos pátios, sempre com
medo da minha própria sombra. Inclusive, a minha casa e a dos vizinhos do lado,
estiveram vigiadas no período da “legalidade revolucionária”. Quer o meu pai,
quer o vizinho, eram tidos como “fascistas incómodos”. Nunca sabia quem ia
encontrar encostado a um candeeiro de iluminação pública que por sinal se
encontrava justamente defronte à entrada do prédio, nem o que se poderia passar
a qualquer momento. O pão? Bom, o salário do meu pai, era o único a entrar em
casa e, no pós 25 de abril, ele e muitos outros viram os seus vencimentos sem
atualização por cinco longos anos. A educação? Apenas como ponto de partida,
posso frisar que, no 2º ano do Ciclo Preparatório, na minha turma conseguiu-se
a proeza de, nada mais, nada menos, termos tido quatro professores de
Matemática, com interregnos entre si. Os inícios de ano letivo foram, por largo
tempo, imensamente tardios. Nunca se conseguia começar as aulas antes do mês de
novembro, e nem sequer em pleno, pois havia sempre disciplinas sem professor
colocado. Ao tempo, ninguém considerava isso um problema. A maioria dos
docentes não tinham licenciaturas, dado que uma grande parte lecionava com
habilitações académicas ao nível do antigo sétimo ano liceal (atual 11º ano).
Este
foi o meu 25 de abril. Ao tempo, uma das frases mais ouvidas era “o povo é quem
mais ordena”.
Tempos
trazem tempos, viveram-se cinquenta anos de ditadura. Volvidos que são outros
cinquenta anos após o 25 de abril, é o povo quem mais ordena?
“E,
se todo o mundo é composto de mudança, troquemos-lhe as voltas que ainda o dia
é uma criança!”.
Texto
escrito por Alexandra Roldão – 61 anos
O 25 de Abril de 1974 é uma data marcante na história de Portugal, mas, para mim, permanece envolta em uma névoa de distância e desconexão. Naquele dia, eu estava longe da agitação da capital, no Norte do país, onde o ritmo da vida era mais lento e as notícias demoravam a chegar. Enquanto Lisboa fervilhava com a euforia da Revolução dos Cravos, eu vivia longe, onde o eco dos acontecimentos parecia abafado pela serra e pelos vales. As informações chegavam aos poucos, fragmentadas, como sussurros que se perdiam no vento. Não havia televisão na minha casa, e o rádio, quando funcionava, trazia apenas fragmentos do que se passava. Lembro-me de uma sensação de isolamento, como se o mundo lá fora estivesse mudando, mas eu estivesse parada no tempo. Hoje, ao olhar para trás, percebo que o 25 de Abril foi um acontecimento importante para o país, o nascer da liberdade, mas, naquele momento, para mim, foi apenas um dia como qualquer outro, distante e silencioso. A História acontecia longe dos meus olhos e eu só vim a compreendê-la muito depois.
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